Psicoterapeuta. - CRT 42.156

Psicoterapeuta. - CRT 42.156
Fernando Cesar Ferroni de Freitas

reportagens

Batalha contra o crack parece ainda não ter começado no plano federal 

Jornal O Estado de Minas
Quase dois meses depois do lançamento do programa federal, houve apenas ações pontuais
Renata Mariz

Quarenta dias depois que a presidente Dilma Rousseff lançou o plano Crack, é Possível Vencer, a batalha contra a droga parece ainda não ter começado no plano federal. Apenas ações relacionadas ao tratamento já foram efetivamente executadas, por meio do repasse de cerca de R$ 15 milhões feito pelo Ministério da Saúde a oito municípios considerados prioritários. Na área de repressão, entretanto, nada saiu do papel. Aumento de efetivo policial nas fronteiras, contratação de agentes federais e até câmeras para monitorar a rotina nas cracolândias são algumas das medidas ainda sem data para ocorrer. O monitoramento dos espaços de uso, que poderia minimizar a presença da polícia, tão criticada na operação deflagrada pelo governo de São Paulo desde o início do ano, só poderá ser feito quando os estados aderirem ao programa federal. Só que nenhum, até agora, assinou o pacto.

A assessoria de imprensa da pasta esclareceu que só depois da assinatura do pacto é que a União repassará os recursos aos estados, que farão a compra das câmeras que permitirão o monitoramento das áreas de uso coletivo, cujo principal objetivo será identificar pequenos traficantes. Enquanto nenhum estado adere formalmente, o plano contra o crack, pelo menos na área da segurança, está na fase das “conversas técnicas”. A mais recente foi realizada ontem, no Recife, entre integrantes do governo local e da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), ligada ao Ministério da Justiça. Com a experiência de São Paulo, criticada pelo efeito da polícia nas cracolândias, que dispersou os usuários pela cidade, o governo federal recomendará às unidades da Federação que a abordagem aos viciados nas ruas se dê com polícia, assistente social e profissional de saúde, ao mesmo tempo.

Para tal recomendação, o governo federal se inspira na controvérsia gerada em São Paulo, onde a polícia tem dispersado os usuários e, com isso, estaria supostamente dificultando a abordagem por parte das equipes de saúde, além do uso de balas de borracha e bombas de efeito moral. Mas, como a União não tem poder de determinar como as polícias estaduais devem agir, caberá a cada governador ou prefeito determinar os limites da atuação dos homens fardados nas operações locais contra o crack.

Ocupação

O tema é polêmico não apenas entre os gestores que se deparam agora com todos os riscos políticos relacionados à forma de combater a droga, mas também entre especialistas. Para o psiquiatra Emmanuel Fortes, que integra o Conselho Federal de Medicina, a presença policial deve ser mantida em outros estados, assim como São Paulo vem fazendo. “O Estado brasileiro não liberou a droga. Então, a polícia tem que ocupar esses espaços. A detenção da pessoa que porta droga para consumo ou para traficar está prevista em lei, não é uma violação das liberdades individuais, como muitos estão apregoando por aí”, defende.

Para Ignácio Cano, especialista em segurança pública da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), o temor é que a operação na cracolândia, com o uso da polícia, evidencie outros objetivos menos nobres do que convencer o usuário a se tratar. “Em geral, as ações têm se pautado pelo intuito de limpar um território de alto interesse. Essa estratégia tem certo sucesso temporal, mas passado um período os grupos voltam a se organizar. As medidas autoritárias colocam-se no lugar de conquistar a vontade do usuário de se tratar, sem a qual qualquer esforço é em vão”, afirma. Para Fortes, entretanto, a desconcentração causada pela polícia é positiva, porque dificulta o acesso à droga. “Reunidos, fica fácil para o pequeno traficante distribuir. A dificuldade de equipes de saúde alcançarem esses usuários é o efeito colateral, que pode ser vencido”, afirma.

Ações na área da saúde

Cerca de R$ 15 milhões foram repassados desde o lançamento do plano a sete municípios prioritários e ao Distrito Federal na questão do crack. Saiba mais:

SÃO PAULO

Investimento: R$ 3,2 milhões

Ação: custeio de 150 leitos para tratamento.

SÃO BERNARDO DO CAMPO (SP)

Investimento: R$ 1 milhão

Ações: custeio de um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) 24 horas, duas unidades de acolhimento adulto e 50 leitos.

RECIFE

Investimento: R$ 2,8 milhões

Ação: transformação de quatro Caps em unidades 24 horas. Aumento de repasse para um Caps Álcool e Drogas 24 horas. Apoio a quatro unidades de acolhimento de adultos, quatro unidades de acolhimento infantil e 190 leitos.

RIO DE JANEIRO

Investimento: R$ 2,8 milhões

Ações: aumento de custeio para dois Caps Álcool e Drogas e três unidade de acolhimento. Aumento de custeio para 75.

SALVADOR

Investimento: R$ 258 mil

Ações: custeio de uma unidade de acolhimento para adultos, um consultório na rua e 15 leitos.

FORTALEZA

Investimento: R$ 1,7 milhão

Ações: aumento de custeio para 14 Caps, dos quais dois são para crianças e seis especializados em álcool e drogas, totalizando 112 leitos.

PORTO ALEGRE

Investimento: R$ 1,3 milhão

Ações: aumento de custeio para 55 leitos, quatro Caps 24 horas, uma unidade de acolhimento adulto e um consultório na rua. Até 2014, Porto Alegre vai ter 225 novos leitos.

DISTRITO FEDERAL

Investimento: R$ 1,7 milhão

Ações: aumento de custeio para três Caps para distúrbios psiquiátricos, um Caps 24 horas, um Caps Álcool e Drogas, além de 65 leitos.




QUARTA-FEIRA, 7 DE DEZEMBRO DE 2011

Prazer compulsivo

Para o cérebro, toda recompensa é bem-vinda, venha ela de uma droga ilícita ou da experiência vivida. Sempre que os neurônios dos centros encarregados de reconhecer recompensas são estimulados repetidamente por substâncias químicas ou vivências que confiram sensação de prazer, existe risco de um cérebro vulnerável ficar dependente delas e desenvolver uma compulsão. Por isso tanta gente bebe, fuma, cheira cocaína, perde casa em jogo de baralho, come demais, faz sexo sem parar, compra o que não pode pagar e levanta peso compulsivamente nas academias.
A palavra dependência vem sempre associada às drogas químicas, ao desespero do dependente para consegui-las, ao aumento da tolerância às doses crescentes e à crise de abstinência provocada pela ausência delas na circulação. A tríade compulsão-tolerância-abstinência, no entanto, não é obrigatória mesmo no caso de substâncias dotadas de alto poder de adição.
A cocaína, por exemplo, droga de uso altamente compulsivo, causa síndromes de abstinência relativamente discretas, desde que o usuário não entre em contato com a droga ou com alguém sob o efeito dela. Apesar de causar dependência, a maconha muitas vezes é consumida esporadicamente, sem que o usuário apresente crises de abstinência dignas de nota. Doentes que tomam morfina para combater dores fortes, em menos de 3% dos casos, desenvolvem obsessão pelo medicamento quando as dores param.
Toda vez que o cérebro é submetido a estímulos repetitivos carregados de conteúdo emocional, os circuitos de neurônios envolvidos em sua condução se modificam para tentar perpetuar a sensação de prazer obtida.
Esse mecanismo, conhecido como neuroadaptação, é arcaico. Quando a abelha penetra uma flor e sente o prazer de encontrar o alimento desejado, é liberado, em seu cérebro, um neurotransmissor chamado octopamina. Quando um adolescente fuma maconha ou cheira cocaína, ocorre, nas terminações nervosas de certas áreas cerebrais, aumento na concentração de dopamina. A semelhança de nomes entre ambos os neurotransmissores traduz a proximidade da estrutura química existente entre as duas moléculas. Apesar de as abelhas terem divergido da linhagem que nos deu origem há mais de 300 milhões de anos, os mediadores da sensação de prazer são quase os mesmos nas duas espécies. Na seleção natural das espécies, levaram vantagem reprodutiva aquelas que desenvolveram mecanismos de recompensa ao prazer com o objetivo de criar a necessidade de buscar sua repetição. Para o organismo, em princípio, tudo o que traz bem-estar é bom e deve ser repetido. Se não fosse assim, nós nos esqueceríamos de nos alimentar, de fazer sexo ou de procurar a temperatura mais agradável na hora de dormir.
Os estudos para entender o mecanismo de neuroadaptação em resposta aos estímulos repetitivos de prazer levam a crer que os neurônios se organizem em circuitos que convergem para estações cerebrais situadas nas proximidades dos centros que coordenam memórias e emoções. Neurônios situados nessas estações ligadas à recompensa estabelecem conexões com outros que convergem para o chamado centro da busca. Estes, quando ativados, interferem no comportamento, criando forte sensação de ansiedade para induzir o corpo a buscar a repetição do prazer. Por isso o fumante sai da cama atrás de um bar para comprar cigarro, o alcoólatra bebe no horário de trabalho e o craqueiro pede esmola para comprar a droga. Por um capricho da natureza, entretanto, a estimulação repetida do centro do prazer pode provocar ativação irreversível do centro da busca, de modo que este permanece estimulado mesmo quando o uso da droga já não traz mais prazer nenhum. Em outras palavras, o prazer repetido à exaustão pode disparar o centro da busca irreversivelmente. É freqüente entre os usuários crônicos de drogas o aparecimento de quadros persecutórios em que o dependente imagina ser perseguido pela polícia ou por algum desafeto. No caso da cocaína, da heroína, do crack, da morfina ou do álcool, não é raro surgirem alucinações em que o usuário vê bichos na parede e inimigos embaixo da cama. Nessa fase da adição, nem o dependente é capaz de entender o que o leva a tomar outra dose e a repetir experiência tão dolorosa. O centro da busca assumiu o controle; obriga o dependente a ir atrás de um prazer que não existe mais.
Esse mecanismo neuroadaptativo, associado à tolerância que o organismo desenvolve a doses crescentes de qualquer droga administrada repetidas vezes, constrói a armadilha que aprisiona tantas pessoas no inferno da dependência química. A primeira cerveja deixa o adolescente bêbado; depois de alguns anos, é preciso tomar meia dúzia para obter efeito semelhante. A primeira cachimbada de crack tira de órbita e faz o ouvido zumbir durante meia hora, mas, após alguns dias de uso, o efeito dura menos de um minuto. Pela mesma razão, todo usuário crônico de maconha se queixa equivocadamente de que não existem mais baseados como aqueles de antigamente.
Em artigo publicado na revista “Science”, um grupo seleto de neurocientistas mostra que, por trás do consumo de drogas, das compulsões alimentares, sexuais ou de fazer compras, da cleptomania e do vício do jogo ou de fazer exercícios exageradamente, existe um mecanismo comum de neuroadaptação.

Dráuzio Varella